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TRANSBORDAR ADENTRO: OCUPAR

por Clarissa Diniz

Quase 40 anos separam duas quebradas da arte brasileira: o projeto Da Quebrada (2018), de Gu da Cei, e o PN28 Nas Quebradas (1979), de Hélio Oiticica. Junto com o tempo, se distanciam também algumas das escolhas de linguagem de cada obra - como as preposições, os pronomes e a singularidade/pluralidade que indicam a quebrada como o lugar ao qual se pertence (Da Quebrada) ou como lugares por onde se passa (Nas Quebradas) -, evidências da heterogeneidade dos contextos sociais da produção das duas obras.

Nos anos 1970, embalado pela crítica à modernidade burguesa, o penetrável de Oiticica propunha uma pedregulhosa, estreita e enviesada espacialidade, informada pela arquitetura das favelas ("arquitetura de favela que é sem limite/os tiozinho, os Niemeyer dos madeirite", como atualiza o rapper Inquérito). Por sua vez, não é o espaço, mas o sujeito o protagonista de Da Quebrada. Enquanto o PN28 implicava um corpo inespecífico, ainda que em estado de atenção dada a experiência física e simbolicamente vertiginosa do penetrável, o projeto de Gu da Cei ampara-se na espacialidade planar da fotografia para escapar da dimensão adjetivante da periferia e, noutra direção, apontar para seu caráter substantivo. Retratados e posteriormente revelados em cianotipia, são indivíduos autodeterminados, com nomes, corpos, rostos e performatividades singulares (como MC Debrete ou Pietra Sousa), que, por meio de lambe-lambes, impregnam as ruas: em especial, aquelas da Ceilândia, a maior cidade do Distrito Federal, a quebrada de onde vêm ou a partir da qual agem nesse mundo.

O projeto de da Cei politiza as expressões daquele lugar, ocupando-o de acordo com seus próprios interesses e estratégias. Aponta, assim, para a importância de reagir à apropriação, à exploração e à estetização do outro e da periferia, risco constante da arte em sua urgência de engajamento nas lutas contra a desigualdade e a violência social. Tal precisão ética e estética encontra reverberação nos outros artistas que, nesta edição do TRANSBORDA, estão também atentos aos desafios e às contradições da "adversidade da qual ainda vivemos" (H.O.): Alice Lara, Cecilia Bona, Cléo Alves Pinto, Diego Bresani, Hilan Bensusan, José de Deus, Kabe Rodrigues, Laura Fraiz-Grijalba, Raquel Nava e Rodrigo de Almeida.

Seus trabalhos não duplicam, contudo, a agenda dos movimentos sociais ou mesmo as estratégias de luta do ativismo. Por isso, fazem aportar à arte não apenas as questões ligadas aos corpos racializados e sexualizados que são pauta desses movimentos, mas sobremaneira subjetividades, sensibilidades e experiências perceptivas não normativas que são igualmente violentadas pelo capitalismo e que, por vezes, sobrevivem de seus restos. Saltam aos olhos a infixidez entre o humano e o animal, a ordinariedade ou o vestígio do consumo que é reinventado como subjetividade e ornamento, os exercícios de deambulação crítica, a dimensão a um só tempo analítica e ficcional do universo digital e das redes sociais, o pensamento editorial que recorta e reencena a história e as narrativas íntimas: aspectos que tensionam e elucidam a experiência social desde perspectivas não adestradas.

Assim é que, nesse entrecruzamento de artistas da região do Distrito Federal, algo parece estar se movendo sagaz e lentamente de lugar, forçando transformações nas tradições e centralidades históricas - como alguém que, da quebrada, irrompe e redesenha bordas: transbordar pra dentro não é expandir, mas ocupar. Como nos adverte Hilan Bensusan em O andarilho no plano (2013), "o andarilho chega, ele tá chegando. Ele tá abrindo caminho, ele tá tendo lugar. Tudo o que acontece tem lugar. (...) O plano é uma encruzilhada, uma encruzilhada imensa: Como uma encruzilhada de tudo o que acontece. Uma encruzilhada de tudo o que tem lugar, a enorme encruzilhada dos existentes. (...) Todos existem de alguma maneira nessa encruzilhada. Todos. Todos. Todos! Todos os andarilhos! Tudo o que há".

CLARISSA DINIZ

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