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GU DA CEI

por Elilson

Nomes perimetram lugares. Na esfera pública, placas de ruas, letreiros de ônibus, títulos de estações de trem, emblemas de órgãos e repartições municipais, dentre outros, não só orientam como introjetam limites de trânsito e utilização dos espaços. Há, em circulação, uma contradição sintática: com substantivos simples (“a Prefeitura", a Companhia de Transportes", "o Metro") a cidade tanto orquestra uma ilusória coletividade quanto camufla os sujeitos que, de fato, dão rosto ao poder. Quanto a nós, sabemos que nossos nomes rapidamente perdem sua propriedade de singularização: viramos números de identificação, impressões digitais, códigos de consumo, protocolos de atendimento... Nessa massificação, são justamente os nossos rostos que têm sido capturados, registrados e disseminados por estratégias de vigilância que nos restringem cada vez mais aos mecanizados papéis de "passante" e "usuário".

Essas contrações entre mobilidade e controle são algumas das questões suscitadas pelo processo criativo de Gu da Cei. Em suas performances, intervenções urbanas, vídeos, fotografias e instalações, o artista engendra uma contravigilância que já se dispara em seu próprio nome, que agrega e movimenta a multidão do território que o constitui - Ceilândia, a mais populosa das cidades por muito tempo chamadas de "satélites" para que se mantivesse verbalmente a ideia de um "centro". Ademais, sua escala geográfica e sua pluralidade cultural, advinda dos nordestinos que edificaram Brasília, definitivamente a afastam da condição de órbita da capital. Mas as distinções de acesso, como sabemos, ultrapassam disputas verbais, e é no vaivém diário pelos 26 quilômetros que separam sua casa do "Plano Piloto" que Gu inicia um processo de experimentação visual para dar a ver com mais intensidade os paradoxos presentes no direito que garante o acesso a todos os outros: a mobilidade. Ao correlacionar suas práticas como artista e comunicólogo, o sistema de biometria facial nos ônibus do Distrito Federal entrou na mira de suas ações. Esse sistema, que se tem oficializado por várias cidades do país, consiste na instalação de câmeras que instantaneamente transformam a imagem dos passageiros em dados processados que ficam sob a tutela das empresas de transporte. Em outras palavras, com a justificativa de inibir fraudes nos programas de gratuidade, a biometria facial é como uma catraca ao quadrado: dobra, simultaneamente, a "seleção de público" e a concentração de poder dessas empresas, que capitalizam o direito de ir e vir e violam o direito ao anonimato, enunciando "segurança" e "vigilância" como par sinonímico.

O artista fez cumprir-se a Lei de Acesso à Informação do Distrito Federal (4.990/2012) ao ser a primeira pessoa a solicitar as imagens biométricas para fins não policiais. Após meses performando os meandros burocráticos de sistema, entre sindicâncias, ofícios, protocolos e memorandos, conseguiu adquirir os registros de seu rosto. O conjunto de recapturas de suas ações banais nas catracas dos ônibus - lendo revistas, ouvindo música, comendo pipoca ou esperando rente à câmera o veículo esvaziar-se imbricaram na esfera pública quando o artista as projetou em 8 metros quadrados do teto da Rodoviária do Plano Piloto, por onde circulam diariamente 700 mil pessoas. As fotografias, que ganham contornos de humor e absurdo pela escala da projeção, foram sobrepostas pelos termos "vigia"/"vigiado" e pelo anúncio: "Exija suas fotos em: www.e-sic.df.gov.br". A intervenção arquitetônica foi acompanhada pela performance do artista, que, mascarado, transitou na rodoviária emulando gestos de imobilidade, arregalando os olhos e colocando suas mãos ao alto. Enquanto sublinhava corporalmente a paranoia de ser perseguido, os demais usuários escaparam momentaneamente da inércia nervosa pela espera dos coletivos ao olharem para a cobertura da estação e passarem a ter ciência, finalmente, de que não só pagam tarifas, como cedem seu direito de imagem. Ao gritar "Pega" inúmeras vezes, Gu denunciava o sistema de vigilância, ao mesmo tempo que convidava as pessoas a vigiá-lo. A repercussão midiática da ação, em parte argutamente articulada pelo próprio artista, que também é assessor de imprensa, fez subir em 4.600 por cento, só na primeira semana, a quantidade de solicitações de imagens.

No processo de se reapropriar de seu próprio rosto e depois expropriá-lo nos espaços públicos - como nos adesivos que cola em assentos de ônibus, atrelando à sua imagem uma "estética do flagrante" - Gu desdobra o sistema: disputando corpo a corpo a noção de público, induziu a companhia geral de transportes a informar, nos noticiários, que qualquer usuário poderia solicitar seus registros biométricos. Desse modo, coletivizou um dissenso performativo, explicitando uma prática "oculta" que quer tomar para si nossas imagens e torná-las obsoletas. Nessa vigilância reversa, o espelho que direciona ao rosto de quem nos controla também se materializa nos trabalhos propostos para esta exposição: seja no smile projetado na fachada do Instituto Tomie Ohtake, seja na cenografia de ônibus deslocada para o centro do espaço expositivo, com o público experimentando ser um panóptico. Seus trabalhos adicionam camadas de visibilidade ao que já há de kitsch, trash, cômico, absurdo e paranoico nos próprios lugares de passagem - "públicos e institucionais" - e nos convocam a antiperformarmos o imperativo do poder público-privado: vigiai-vos uns aos outros.

ELILSON

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