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FOTOGRAFIA EXPANDIDA E INTERVENÇÃO URBANA:

a arte ceilandense na paisagem

RESUMO: Pesquisa sobre a linguagem estética fotográfica contemporânea e fotografia expandida, que busca compreender as possibilidades dialógicas entre processos históricos e contemporâneos da fotografia, bem como seus espaços de exibição e circulação por meio de intervenções urbanas. Produziu-se uma série de vídeos e  intervenções com lambe-lambes no formato 50cm x 90cm a partir de fotografias escaneadas e reveladas com um método químico histórico de 1842 chamado cianotipia. As pessoas representadas são artistas que tem sua trajetória marcada pela Ceilândia, maior cidade do Distrito Federal, cuja localização periférica em relação à cidade de Brasília acaba por impactar na visibilidade e circulação das obras desses artistas em relação às manifestações culturais ocorridas no centro.



PALAVRAS CHAVES: fotografia expandida; cianotipia; intervenção urbana; lambe-lambes; Ceilândia.

É inegável o fato de que a fotografia representa umas das maiores conquistas da humanidade, constituindo a base tecnológica, conceitual e ideológica de todas as mídias contemporâneas (MACHADO, 2000). Tal facilidade de representação imagética, aplaudida como um meio mais acessível de expressão artística, incomodou profundamente os conservadores da pintura clássica e até mesmo dos museus, instituições que, em alguns casos, hoje são possuidoras de uma imagem questionável, atrelada a um passado burocrático, elitista e, por conseguinte, segregador (OLIVEIRA, 2009).

Os tempos mudam, mas a competitividade, agravada ainda mais pelos princípios do sistema capitalista, permanece. Passamos, na fotografia, da disputa pelo melhor processo de revelação e fixação de imagens para a concorrência por atenção e maior número de curtidas na Internet. Da concepção puramente documental para a criação de realidades alternativas. O que mais poderia caracterizar o processo fotográfico para além da facilidade edição e intervenção pós era digital, impactando no resultado alcançando?

A circulação da imagem passa a ser crucial. Para além da esfera íntima dos álbuns de família, a imagem ganha conotação social em mídias digitais na contemporaneidade e altera seu status. A imagem transita por diferentes universos seja na sua forma física ou virtual. Mais do que abalar as definições do que pode vir a ser considerado arte, a fotografia abriu um horizonte criativo comunicacional antropológico, que nos aproxima do corpo visível e da exterioridade do ser humano (Samain, 2001), no sentido de proporcionar uma construção imagética própria do autor, comunicando-se através de representações e propiciando um descobrimento sobre quem somos ou revelamos. Nesse cenário, no entanto, consegue implementar um olhar conceitual à fotografia quem a concebe como processo complexo, para além do ato fotográfico.

Na fotografia, o que diferencia a abordagem meramente técnica da conceitual, conforme propõe Flusser, é a capacidade de insubordinação dos aparelhos fotográficos e intervenção no resultado apresentado. Para compreender melhor as possibilidades criativas neste contexto de interferência e experimentação contemporânea, propomos um diálogo com conceito de fotografia expandida, contrapondo-se à compreensão tradicional da fotografia. De acordo com Fernandes Junior (2006), esse fenômeno pode ser caracterizado da seguinte forma:

 

A fotografia expandida existe graças ao arrojo dos artistas mais inquietos, que desde as vanguardas históricas, deram início a esse percurso de superação dos paradigmas fortemente impostos pelos fabricantes de equipamentos e materiais, para, aos poucos, fazer surgir exuberante uma outra fotografia, que não só questionava os padrões impostos pelos sistemas de produção fotográficos, como também transgredia a gramática desse fazer fotográfico (FERNANDES JUNIOR, 2006).

 

A transgressão gramatical típica do fazer fotográfico expandido concebe a fotografia como processo que se inicia antes do clique e tem continuidade no pós-clique, agregando, ainda, diferentes linguagens artísticas ao processo, como a performance, a instalação, a escultura, o vídeo e até mesmo a pintura na criação de mundos e narrativas alternativas e híbridas onde a foto é mais uma integrante da obra. Expande-se a possibilidade do que pode ser visível em um momento tecnológico orientado pela produção e predomínio das imagens digitais, no qual os elementos do fragmento original são armazenados por códigos que podem ser reconhecidos pelo dispositivo de visualização e apresentados novamente por outro dispositivo de visualização, como um monitor de vídeo ou impressora, por exemplo (BALAN, 2009).

Com o auxílio dos avanços até aqui conquistados, vários podem ser os universos e as realidades representadas imageticamente. E, por que não, pensar na retomada de processos históricos fotográficos e suas interferências na Era Digital para problematizar questões culturais e visibilidades artísticas segregadas no espaço da cidade? É o que propomos com esta pesquisa.

 

DA QUEBRADA

Os grandes centros urbanos são caracterizados pelo intenso fluxo de pessoas, automóveis, edificações e publicidades do mais diversos formatos. A correria intrínseca a uma rotina imposta pelo sistema produtivo faz com que as pessoas sejam cada vez mais individualistas. Enquanto isso, o bombardeio de informações faz com que o olhar seja cada vez mais seletivo.

As ocupações e intervenções nos espaços urbanos por meio de diferentes técnicas e linguagens expõem que há vida para além do ciclo trabalho-casa, que pessoas usam o espaço urbano para compartilhar pensamentos e ideias, embora muitas vezes sejam criminalizadas e reprimidas por isso. O espaço público é realmente público? Nessas novas relações que criamos com a paisagem em que estamos inseridos, fica implícita a presunção de que o local de transformações políticas é também o local de transformações artísticas (PEIXOTO, 1999).  

“A cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala aos seus habitantes, nós falamos a nossa cidade, a cidade onde nós nos encontramos simplesmente quando a habitamos, a percorremos, a olhamos” (BARTHES, 1987). Seja com o grafite, com o pixo, lambe-lambes, performance, fotos, vídeo etc., os artistas interventores buscam se inserir nesse discurso de forma a questioná-lo.

Seguindo o mesmo raciocínio, a discussão iniciada por essa pesquisa se comprometeu em inserir na paisagem do Distrito Federal sete artistas de Ceilândia, cidade satélite mais populosa da região, que conta, segundo dados de 2015 da Companhia de Planejamento do Distrito Federal, com cerca de 489.351 habitantes, número superior ao de muitas capitais brasileiras. Embora o número seja grande, ele não corresponde à quantidade de centros artístico-culturais disponíveis na região.

Há uma invisibilidade da arte local, fruto de um modelo elitista herdado do século XIX que deu continuidade a uma organização “por diferenças entre os grupos sociais: os que entram e os que ficam de fora; os que são capazes de entender a cerimônia e os que não podem chegar a atuar significativamente”. (GARCIA CANCLINI, 2003, p. 47)”. Tal modelo engendrou a concepção de Brasília que, em seu processo de construção, criou várias cidades satélites afastadas do centro para abrigar aqueles que vieram para construí-la, mas não tinham o direito de habitá-la. Assim surgiu a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI) que deu origem à Ceilândia.

Nesse contexto, a CEI removeu milhares de trabalhadores braçais utilizados na construção, grande parte deles provindos do Nordeste do país, para uma área a 30 km Plano Piloto da capital federal. Essas pessoas não correspondiam ao perfil “civilizado” almejado para a nova cidade. Foi necessária uma higienização e realocação para a então nova cidade satélite sem estrutura apropriada.

Os olhos e investimentos se voltam para o Plano Piloto e se faz necessário que as periferias se articulem para manter um movimento de promoção das produções que nascem e são influenciadas por suas condições socioeconômicas. As barreiras para que se alcance os típicos espaços centralizados e elitistas da Arte são interpostas em um cenário onde se defende a meritocracia no contexto brasileiro.

Para além disso, os artistas provindos de um contexto periférico não estão muito preocupados com os espaços tradicionais, embora também queiram ocupá-los. A maior inquietude dessas pessoas é, de fato, expressar sua arte e usá-las politicamente. Seja essa expressão reconhecida por um grande número de pessoas ou não. A busca pelo ação e pela mudança são maiores.  

A paisagem da cidade começa a agregar diferentes rastros deixados por quem nela se movimenta. Rastros que podem expandir-se através de intervenções artísticas, provocando a reflexão sobre as barreiras invisíveis que nos são colocadas. E, por que não, inserir artistas de Ceilândia na paisagem do Distrito Federal? Por que não documentar a sua existência e sua contribuição para a arte e cultura regional?

“[...] entendida como um conceito que traduz o aspecto global – o visível e o invisível/ sentido, mas não visto – de uma área. Ela [paisagem] envolve os elementos físicos/naturais, suas interações, assim como todas as intervenções e articulações provocadas pela ação humana. Portanto, também fazem parte da paisagem os elementos históricos e culturais que sinalizam o processo organizacional dos diversos grupos sociais, construídos ao longo do tempo. A paisagem é resultado do acúmulo de ações temporais” (CASTROGIOVANNI, 2001, p.132).

 

Zukin (1991, p. 81) defende que a apropriação cultural dos espaços se dá em duas etapas, “primeiramente, um grupo social não relacionado de modo nativo à paisagem ou ao vernacular assume uma perspectiva de ambos. Em segundo lugar, a imposição de sua visão — convertendo o vernacular em paisagem — conduz a um processo material de apropriação espacial”.

Na intenção de sinalizar e agregar a arte de Ceilândia na paisagem, levando em conta o carácter expandido da fotografia aqui abordado, foram criadas, no âmbito desta pesquisa, uma série de intervenções com lambe-lambes (criados a partir do processo fotográfico histórico da cianotipia) e vídeos intitulada “Da quebrada”, em que se faz presente a imagem de sete artistas da cidade.  Buscou-se “um distanciamento da política institucional para enfatizar a cultura e a reprodução social como terreno de combate” (MAZETTI, 2006).

O processo de captação de imagens se iniciou com entrevistas que buscavam conhecer melhor os artistas e entender como a cidade interfere em suas produções, elaborando-se uma espécie de vídeo documentário sobre cada um. Após o momento de conversa, foram capturadas imagens fixas do corpo dos artistas. As fotos foram transformadas em fotolitos e reveladas via cianotipia, processo de revelação fotográfica criado em 1842 pelo cientista e astrônomo inglês Sir John Herschel e que tem os tons azuis são a principal característica.

As imagens foram reveladas em papel aquarela sensibilizado com citrato férrico amoniacal de cristais verdes e ferricianeto de potássio e exposto ao sol em chapa de vidro. Dias após a revelação, com a tonalidade já estabilizada, as imagens foram escaneadas, assim como os negativos/fotolitos utilizados. Com o auxílio do software de edição de imagens Adobe Photoshop, foi realizada uma montagem com as imagens digitalizadas, onde a foto azulada fica sobreposta ao negativo e acima do elemento de texto (nome da artista) adicionado.

A coerência estética de todo o material produzido nessa intervenção se baseou no processo de revelação com cianótipo. Os vídeos foram coloridos e tonalizados seguindo a coloração resultante do método histórico. Também foram acrescentados efeitos que, em determinados momentos, deixam as imagens em negativo. Com algumas exceções, os vídeos começam com as expressões artísticas das personagens e terminam com eles colando seus lambe-lambes produzidos. Todos os participantes receberam exemplares das produções, assim como o material necessário para colagem na paisagem.

Diferente dos antigos fotógrafos lambe-lambe, que capturavam imagens em praças públicas com um tipo de câmera que é como um caixote, em que se enfia a cabeça por baixo de um pano escuro (como um mini laboratório) para revelar as fotos (COSTA e CUSTÓDIO, 2007), os lambe-lambes aqui produzidos são impressos em papel, colados nos postes e paredes da cidade a fim de comunicar algo, modelo que é amplamente utilizado pela publicidade e pelas ações de intervenção urbana. A partir da montagem realizada via computador, os lambe-lambes produzidos foram impressos 245 vezes, coloridos e no tamanho 50x90 cm.

Colados em diversas regiões de Ceilândia  e do DF, com destaque para áreas próximas à Rodoviária do Plano Piloto, as intervenções com lambe-lambes foram realizadas com o intuito de representar um pouco do que é feito artística e culturalmente por impulso das artistas que têm sua trajetória marcada por Ceilândia. Tendo ciência de que é impossível retratar por completo a rica trajetória desses artistas neste artigo, apresentamos o link para visualização na íntegra dos vídeos com depoimentos de todos eles e um pouco de sua história, posicionamento político e artístico:  http://www.goo.gl/4SHFzR.

Esses corpos, inseridos na paisagem da cidade em uma espécie de fotoperformance onde o foco está na presença do corpo do artista (e/ou de colaboradores) em ação ou encenação para a câmera (VINHOSA, 2014), se apresentam enquanto seres no caminho dos motoristas e pedestres, enquanto mais uma camada significativa da paisagem, provocando as mais diversas interações físicas e mentais. As respostas à mensagem ali emitida podem se dar desde o ato de rasgar as impressões coladas nas paredes, até o questionamento quanto a tratar-se de fotos de “pessoas desaparecidas”, como  ocorreu em uma das ocasiões enquanto colava alguns dos lambe-lambes. Antes desaparecidas e, agora, “aparecidas” e devidamente apresentadas.

A documentação de parte das intervenções na paisagem pode ser conferida no link https://youtu.be/6dXfrYZdtPA. As inquietações aqui iniciadas também levaram à produção de um evento intitulado “Conversa aberta - o lugar da arte e cultura de Ceilândia”, ocorrido no dia 07 de julho na praça ao lado da Feira Central da Ceilândia, com intervenções artísticas, microfone aberto e debate com artistas e produtores culturais da cidade para debater a cena cultural local. Além disso, a intervenção dos lambe-lambes, foram selecionadas pelo edital Transborda Brasília – Prêmio de Arte Contemporânea, para serem exibidas no espaço Caixa Cultural de Brasília entre os dias 07 de agosto e 07 de outubro de 2018.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em mente que “as intervenções urbanas se dão no dia-a-dia, em uma politização do cotidiano, do espaço público” (MAZETTI, 2006), expandir a fotografia a partir de um processo de revelação histórico, inserindo-a na paisagem urbana de forma a provocar questionamentos, é somente uma das infinitas possibilidades de trabalhar as relações da imagem para além de sua funções meramente documentais.

Além disso, conceber essa pesquisa de forma a promover artistas de Ceilândia-DF contribui com o ideal extensionista intrínseco à Universidade, principalmente a uma universidade pública. A arte passa a ser documentada, promovida e acoplada à paisagem urbana, transbordando os espaços tradicionalmente destinados a ela. A rua é o espaço expositivo e de debate. A produção sai da teoria e interfere esteticamente no cotidiano das pessoas com profundidade muitas vezes incompreensível, mas comunicável.



 

BIBLIOGRAFIA

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BARTHES, Roland. 1987. A aventura semiológica. Lisboa: Edições 70.

 

BRÄCHER, ANDRÉA. O “Espírito dos Sais”: Luiz Eduardo Robinson Achutti e seu trabalho artístico com processos fotográficos alternativos. Revista Gama Estudos Artísticos, Lisboa, vol. 4, número 7,96 – 103, 2016.

 

COSTA, Célio dos Santos; CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro. O fotógrafo da praça e a praça do fotógrafo. Revista Discursos Fotográficos, Londrina, v.3, n.3, p.177-204, 2007. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/discursosfotograficos/article/view/1499/1245> Acesso em 20 de março de 2018.

 

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FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.

 

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